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Memoria e Ricerca

Don Miguel e i suoi doppi

di Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira
in Memoria e Ricerca n.s. 24 (2007), p. 69


                                                        D. Miguel e os seus duplos **
 
 
 
 
 1. Expectativas e rumores
 
 
 
 
Nos primeiros tempos do exílio de D. Miguel, depois da sua derrota na guerra civil de 1832-34 contra os liberais, à frente dos quais se encontrava o seu irmão D. Pedro, uma das hipóteses de acção política contra o novo regime instalado em Portugal desde 1834 mais debatida e temida era a da organização de uma réplica da expedição que dos Açores trouxera muitos desses mesmos liberais para o continente em 1832 para restaurar a dinastia e a Carta Constitucional.
 Em Roma, onde D. Miguel se encontrava desde Setembro de 1834, a hipótese foi considerada durante anos sucessivos pelos dirigentes miguelistas e por vários partidários do infante que continuavam a desembarcar em Itália com novos planos de acção tendentes a fazer sair o príncipe daquilo que alguns consideravam ser a sua “inacção”.
 Em Novembro de 1834 já se dizia em Roma “que em toda a Europa se está(va) fazendo uma colecta a favor do Sr. D. Miguel para preparar uma expedição contra Portugal e que já se (tinham) reunido dois milhões de francos”. O encarregado de negócios do governo português considerou logo o assunto muito seriamente e consagrou muito do seu tempo a procurar informar-se sobre os meios e os apoios que os miguelistas podiam estar a mobilizar neste sentido em diversos estados italianos inclusivamente na própria Santa Sé.
Nestes primeiros tempos, até o embaixador de França terá abordado directamente o assunto com o Papa Gregório XVI, um dos poucos soberanos que havia reconhecido o governo miguelista e que recebera D. Miguel como rei quando ele ali chegou depois da derrota. O embaixador ter-lhe-á dito constar “que as potências do Norte haviam já concorrido com a sua quota-parte” e que se tratava agora “de fazer a derrama pelos príncipes de Itália”, acrescentando que “sabia que as finanças de Sua Santidade não lhe permitiam este sacrifício mas que no Estado Pontifício não deixaria de haver muitos zelantes que concorressem com o seu dinheiro para um tal fim”. O Papa terá mostrado espanto com a notícia, que ouviu “como se fosse pela primeira vez”, dizendo que lhe parecia impossível que tal expedição se tentasse e que houvesse quem para ela concorresse nas “circunstâncias do momento”[1].
As “ circunstâncias do momento” remetiam principalmente para o evoluir da cena política espanhola, dado que a Espanha, onde se desenrolava a primeira guerra Carlista, era, à época, o principal teatro onde se travava o combate entre liberalismo e reacção, combate seguido com a maior atenção e empenho pela Santa Sé.
O representante do governo português nos estados pontifícios, Miguéis de Carvalho, preocupar-se-á em esclarecer o eventual contributo de outros príncipes italianos em particular do duque de Modena, bem conhecido pelos seus sentimentos antiliberais e a cujos estados D. Miguel acabava de se deslocar.
Depois da morte de D. Pedro, que ocorreu em Lisboa em Setembro de 1834, considerava-se muito seriamente em Portugal a hipótese do regresso de D. Miguel que se julgava ter saído de Itália, aventando-se a possibilidade de ele ter desembarcado em Espanha, na Catalunha[2].
A partir deste momento numerosas serão as vezes em que, tanto em Itália como em Portugal, se teme o regresso do Infante quer à frente de uma expedição quer sem ela. Na verdade, a hipótese de que D. Miguel regressasse, não à testa de um exército mas apenas com um pequeno numero de partidários com o intuito de reunir e mobilizar para a revolta os seus adeptos, que se acreditava serem ainda muito numerosos, também nunca foi descartada.
Em Maio de 1835 julgava-se particularmente verosímil a partida de D. Miguel de Roma para Espanha para se juntar às forças do seu tio D. Carlos cujas vitórias, muito empoladas pelos exilados, eram consideradas um firme prenúncio do triunfo da causa absolutista na Península Ibérica.Em Maio de 1835 Miguéis de Carvalho escrevia para Lisboa:
«Neste últimos dias se têm espalhado diversos boatos relativamente à próxima partida de D. Miguel para Espanha, e parece indubitável que é aconselhado para isso, porquanto além de que os seus amigos de todos os países desejam que ele faça esta tentativa e reputam ocasião favorável a actual em que imaginam a causa de D. Carlos como assegurada; acresce que se estimaria muito aqui a sua partida, afim que cessasse o socorro pecuniário que mensalmente se lhe está subministrando, o qual, posto não seja de grande importância, como informei em um dos meus precedentes ofícios, contudo é objecto de crítica nas actuais circunstâncias em que as finanças Pontifícias se acham em tão deplorável estado.»[3]
Neste contexto, a possibilidade de um embarque clandestino de D. Miguel de Porto d’Anzio, um pequeno porto do mar Tirreno onde passava largas temporadas, parecia uma hipótese tão plausível que o representante de Portugal em Roma não hesitou em pedir o auxílio do secretário da embaixada francesa, Tallenay, para que este ali se deslocasse e verificasse in loco as hipóteses que tinha o príncipe exilado de embarcar dali nalgum pequeno bote que o transportasse para uma embarcação maior que estivesse ao largo. Não o querendo fazer ele próprio por considerar difícil que, sendo aquela uma muito pequena povoação, a sua presença não fosse assinalada, Miguéis de Carvalho convenceu Tallenay “da seriedade do caso” e este partiu para Porto d’Anzio a 31 de Maio de onde regressou a 2 de Junho. As informações que transmitiu eram optimistas na medida em que, segundo comunicou, “depois de miúdos exames”, não descobrira nenhum indício do temido embarque. Não deixara no entanto de confirmar que tal embarque era possível e que não seria fácil impedi-lo caso fosse tentado[4].
Apesar de relativamente tranquilizadoras estas notícias não evitaram que continuassem os rumores sobre a eventual fuga de D. Miguel de Itália, por mar ou por terra, afirmando Miguéis de Carvalho que nunca se falara tanto como naquela ocasião da partida de D. Miguel para Espanha.
Em Portugal, em Novembro de 1835, o Ministério da Guerra oficiava aos governadores militares das províncias para que estivessem de prevenção em relação a uma possível entrada em Portugal das forças de D. Carlos através da Galiza e alertando-os também para a eventualidade de D. Miguel ter regressado à Península em companhia do infante D. Sebastião com quem se julgava poder ter entrado em Espanha.
Embora considerando haver razões que faziam acreditar “ ser apócrifa a vinda do Usurpador à península”, o Ministério da Guerra prevenia os governadores militares das províncias contra qualquer tentativa de transtorno da ordem e do sossego públicos e “contra qualquer delinquente que se arroje à temeridade de pretender suscitar novamente a guerra civil que tantas calamidades causou neste país”[5].
Estes rumores decorriam do facto do Infante D. Sebastião, filho da Infanta D. Maria Teresa, princesa da Beira, e do príncipe espanhol D. Pedro Carlos ter chegado recentemente a Espanha vindo de Roma, onde estivera desde Junho, e onde várias vezes se encontrara com o tio D. Miguel. As razões que presidiam às prevenções do governo português contra a eventualidade de um regresso de D. Miguel à Península tornam-se ainda mais claras se tivermos em conta informações como a que Miguéis de Carvalho enviava, à época, para Paris e para Lisboa:
“Pelo ofício que dirigi ao Ministro de Sua Majestade em Paris na data de 14 do corrente, será V. Ex.ª informado do grande entusiasmo que veio excitar entre os Miguelistas a notícia da entrada do Infante D. Sebastião em Espanha, e das diligências que se fizeram para induzir D. Miguel a seguir o exemplo do sobrinho”[6].
Embora as notícias que sucessivamente foram avançadas ao longo dos anos que D. Miguel permaneceu em Roma de que este abandonara a Itália e se dirigira para Espanha ou Portugal se pautassem, ao nível oficial, pela prudência, não deixaram nunca de lançar a inquietação no governo português em particular enquanto a guerra entre os adeptos de D. Carlos e o governo da rainha prosseguia em Espanha, ou seja até 1839-40.
Se a hipótese de uma expedição contra Portugal se ía tornando cada vez mais inverosímil à medida em que se agravava o espectáculo de evidente penúria de que, desde 1835, começavam a dar sinais em Roma as hostes miguelistas, a eventualidade do regresso clandestino de D. Miguel a Portugal para se pôr à frente de uma revolta dos seus partidários inspirava mais sérias inquietações.
A presença do príncipe proscrito continuava a ser considerada altamente perigosa pelo seu potencial mobilizador, e os rumores que anunciavam o seu regresso e eram veiculados pelas mais diversas categorias de pessoas nos primeiros anos do pós-guerra eram tidos por muito perturbadores, em particular nas províncias do norte, que se considerava regurgitarem de apoiantes seus.
Aí multiplicavam-se notícias e rumores relativos a expedições e revoltas miguelistas assim como ao regresso de D. Miguel a Portugal.
Na cidade de Braga, por exemplo, logo em Outubro de 1834, as autoridades comunicavam que se tinham espalhado a “notícia aterradora” de estar “ o ex-infante D. Miguel em Elvas onde tinha dado beija-mão havendo já ordem nessa cidade para ser aclamado”[7]. Os divulgadores da notícia eram barqueiros.
Na mesma ocasião circulava na vila dos Arcos, no Alto-Minho, o rumor da volta de D. Miguel até ao fim do ano acompanhado de um exército estrangeiro e da morte da rainha. As autoridades faziam notar que o boato corria as feiras para grande regozijo dos miguelistas e do clero[8].
Na vila de Barcelos, não longe de Braga, igualmente situada na populosa província do Minho, um ex-frade capucho foi preso, em Novembro do mesmo ano, por anunciar a vinda de D. Miguel e o breve regresso dos frades aos conventos[9]. Pela mesma época as autoridades militares da província, dando conta do prosseguimento deste género de rumores, relacionavam-nos com a circulação insistente da notícia de estar D. Miguel em Espanha[10].
De Melgaço, na fronteira com a Galiza, o governador militar pedia esclarecimentos a Lisboa e a Ourense sobre o rumor segundo o qual D. Miguel tinha desembarcado na Catalunha, manifestando receio de que houvesse partidários seus que quisessem atravessar a fronteira e de que partidários de D. Carlos viessem para Portugal[11]. Em finais de Novembro de 1834 foi preso na vila da Póvoa do Varzim, também no noroeste, um paisano e a sua filha por dizerem “ que a rainha já não estava em Lisboa e que D. Miguel vinha aí”[12].
Embora os boatos circulassem com mais intensidade quando algum acontecimento ou rumor relativo a D. Miguel chegava de Itália, como é possível constatar com a nova vaga de notícias sobre o regresso do príncipe proscrito a Portugal que se desencadeou cerca de um ano depois, em Outubro e Novembro de 1835, outras circunstâncias são detectáveis como pretexto para a circulação desta categoria de notícias. Serve de exemplo o que o jornal Periódico dos Pobres no Porto noticiou ter ocorrido em Braga nos finais de Janeiro de 1835 quando, por ocasião da chegada a Portugal do primeiro marido da Rainha, D. Augusto de Leuchtemberg, as luminárias e foguetes que saudavam o evento foram interpretados pelos miguelistas como celebrando a “chegada do seu louco herói”, nas palavras do autor da notícia. O “choque de prazer” que, segundo a mesma fonte, terão recebido os partidários do infante foi no entanto de pouca duração: uma banda de música seguida por muitos constitucionais percorreu logo as ruas da cidade mostrando-lhes que “o seu mal não (tinha) remédio”.
 A notícia prossegue referindo que este “desengano” não incluiu “ os rotos e miseráveis iludidos” porque esses ainda tratavam “de ilusório o casamento e ninguém lhes tira(va) da cabeça que D. Miguel esta(va) a chegar”[13].
Embora estas notícias tenham sobretudo tido curso e acolhimento no norte do país foram igualmente registadas noutras regiões. O governador militar do Algarve, por exemplo, comunicava ao ministro da guerra em Junho de 1835 que “ os mal intencionados miguelistas” daquela província tinham dado provas de regozijo em algumas localidade “ não só por aparecer há dias uma esquadra nestas praias que eles supunham vir em seu auxílio, mas também pelas falsas notícias que lhes imbuem os seus correspondentes de Lisboa”[14].
Por vezes a convicção do regresso do ex-rei parecia exprimir-se apenas como bravata e grito de revolta. É o que pode deduzir-se da atitude provocatória de um soldado de Infantaria 18, internado num hospital do Porto por sofrer de “contusões por castigo”, que previa “a vinda do Usurpador cantando cantigas” e a quem o director do hospital ordenou que ficasse “preso com sentinela à vista”[15].
Vendedores ambulantes, barqueiros, soldados, ou seja muitos daqueles que pela sua profissão se deslocavam com frequência de uma terra para outra, parecem ter sido os mais activos propagadores de notícias sobre o regresso de D. Miguel.
Os mendigos, um outro tipo de itinerantes, também terão tido um papel nestes circuitos a julgar pela referência do jornal miguelista O Eco à prisão em Salvaterra de um homem que “pedindo esmola pelas casas espalhava notícias da próxima chegada de D. Miguel”. O Eco, querendo fazer render politicamente a notícia, assinalava que “nem os mendigo escapa(va)m às perseguições”. Mas o mais interessante do episódio terá a ver com o facto de ele não ter sido denunciado por ninguém da vila de Salvaterra, das muitas “ casas em que contava o seu conto”, e de ter sido um eclesiástico de outra vila próxima, o prior de Almeirim, a estar na origem da sua prisão[16]. É também curioso que o referido mendigo contasse como “ seu conto” a notícia do regresso do príncipe exilado, tema tido, aparentemente, como próprio a excitar a generosidade daqueles junto de quem mendigava.
Será no entanto a já referida notícia do regresso à Península do infante D. Sebastião que servirá de pano de fundo à circulação de mais boatos sobre o regresso de D. Miguel no ano de 1835.
Em Amarante, concelho sempre referido no pós-guerra por aquilo que as autoridades liberais designavam por “mau espírito”, ou seja pela sua desafecção ao regime, corria o boato entre os miguelistas, nos finais de Novembro, de “que a sua lei não tardaria a vir” assim como o Infante D. Sebastião[17]. Pouco tempo antes, em finais de Outubro, difundira-se no couto do Vimieiro, concelho de Vila Nova de Famalicão, uma proclamação “incendiária e subversiva”, em que se dava conta das vitórias de D. Carlos e se apelava aos soldados portugueses para que o coadjuvassem em nome da “Santa Religião Católica, das leis antigas e de El-rei D. Miguel I”[18].
No início de Novembro, era do Alentejo, de Vila Viçosa, que se anunciava ao governo que o espírito dos habitantes do concelho continuava a ser “exaltado a favor do Usurpador”, e que estes se valiam de todos os meios “ para propagar notícias sediciosas, afixando pasquins tendentes a firmar a esperança de que o mesmo Usurpador há-de voltar a este reino”[19].
Em Janeiro de 1836, nos finais do mês, o governador civil de Viana foi levado a acreditar na notícia de ter D. Miguel chegado ao país vizinho dados os rumores que circulavam na cidade e a “agitação extraordinária” que nos dias anteriores se verificara entre os seus partidários. O governador das armas do Douro, a quem a notícia fora participada, considerou-a destituída de fundamento, o que não impediu o boato de continuar a circular nos dias seguintes[20].
Em Julho circulava oficialmente uma notícia semelhante e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Conde de Vila Real, informava detalhadamente o seu homólogo dos Negócios da Guerra sobre um ofício que recebera do encarregado de negócios em Roma, com data de 10 de Junho, em que se referiam “ notícias vagas acerca do projecto de evasão de D. Miguel” considerando, no entanto, que elas se tornavam dignas de atenção “ pelo contínuo movimento” que se observava, “ tanto nele como nos seus sectários”, e pelo cuidado que o príncipe mostrava “ em ocultar os seus passos”.
As informações de que o Conde de Vila Real dispunha faziam-no temer “ um movimento de insurreição na Galiza” que serviria de apoio a outro que se procuraria “ excitar nas províncias do Norte de Portugal contra o seu legítimo governo”.
Os apoiantes de D. Miguel estariam a envidar todos os esforços para que o próprio D. Miguel viesse pôr-se à frente do referido movimento sendo nisto ajudados pelo governo pontifício que se acharia “ muito incomodado com os sacrifícios pecuniários prestados a D. Miguel e a seus sequazes”. Haveria uma outra hipótese, considerada menos provável, de que D. Miguel saísse de Roma em direcção à Holanda; certo seria que em Itália e Portugal se buscavam “ todos os meios de o resolver a sair da apatia em que até aqui se tem conservado em Porto d’Anzio”.
 Porque a estas notícias se juntavam outras vindas de Madrid, relativas a uma expedição composta por “portugueses rebeldes e Carlistas com o destino de insurreccionar as províncias do Norte” de Portugal, julgava-se aconselhável tomar importantes medidas de precaução[21].
Depois destas informações serem divulgadas, foi enviada uma circular confidencial a todos os governadores militares das províncias ordenando acrescida vigilância por constar por “informações recentes” que D. Miguel e os “seus sectários” contavam com uma insurreição na Galiza a favor de D. Carlos que serviria de apoio a outra em Portugal, considerando-se poder acontecer que “o Usurpador por suas desesperadas circunstâncias” fosse “ instigado a sair dos estados pontifícios” para “qualquer ponto de Portugal ou de Espanha”[22].
Embora a ameaça não se tivesse concretizado a circulação de rumores relacionados com estas notícias não tardou: de Amarante diziam as autoridades andarem os miguelistas muito contentes espalhando “ boatos aterradores” entre os povos vizinhos segundo os quais, por exemplo, Valença estaria cercada pelo lado da Galiza. Julgava-se ser, um membro da nobreza adepto de D. Miguel que passara a residir próximo da povoação, o principal responsável pelos rumores. Estes eram considerados particularmente perigosos por ser aquela vila e os “povos” circunvizinhos “ uma Filadélfia” que reunia “ homens de várias partes” que não podiam residir em suas terras pelos males que tinham feito durante o reinado de D. Miguel[23].
Pouco depois, em Valença, um pasquim, pregado numa porta, “obra tosca” segundo as autoridades, ameaçava com a vinda de D. Miguel[24]. O mesmo pasquim reapareceria em dias sucessivos naquela vila.
Já a sul do Douro, em Ovar, espalhara-se o boato de que D. Miguel andava perto e de que o príncipe D. Fernando, o marido da rainha, que voltara a casar no início do ano de 1836, não queria a Constituição. Ao mesmo tempo anunciavam-se vitórias e vantagens diversas de D. Carlos em Espanha[25].
No mês de Setembro de 1836, pouco tempo depois da revolução que em Lisboa levara a esquerda do liberalismo ao poder, circulavam, mais uma vez oficialmente, notícias preocupantes relativas aos planos dos miguelistas exilados. Nunca a hipótese de uma expedição destinada “ a promover os interesses de D. Miguel” parecera tão credível: tomava-se como certo que em Itália, nos estados do Duque de Modena, se preparava uma expedição com o objectivo de “invadir a Galiza (…) penetrando na província de Trás-os-Montes, onde se conta(va) com o apoio de agentes miguelistas , ou surpreendendo a Ilha da Madeira”. O alarme era dado ao Ministro da Guerra e ao general português comandante do exército auxiliar em Espanha para que tomassem todas as requeridas precauções que a ameaça exigia[26]. A 20 de Setembro o Ministro da Marinha e do Ultramar, Conde de Lumiares, dava a indicação das despesas previsíveis em que importariam as ordens do governo se fossem expedidas duas embarcações de guerra de Lisboa, uma para a ilha da Madeira e outra para o porto mediterrânico de Massa nos estados de Modena.[27]
Desta vez, como das anteriores, nada se concretizou. No entanto, em Outubro desse ano ainda circulavam boatos em Amarante entre os miguelistas “ da chegado do seu rei” ao Algarve[28].
No ano seguinte novos alertas foram dados contra os presumíveis manejos dos apoiantes de D. Miguel. Numa circular confidencial endereçada aos administradores-gerais dos distritos do reino ordenava-se que fossem tomadas todas as medidas “para prevenir os crimes de alguns maus cidadãos” que persistiam “já no temerário arrojo de restabelecerem o reinado do banido Usurpador já de atentarem contra a gloriosa revolução de Setembro[29]”.
Os “setembristas”, nome pelo qual passaram a ser designados os liberais da ala esquerda, precaviam-se assim contra os seus vários adversários referindo pouco depois, no Diário do Governo, que tanto D. Miguel em Roma como os seus apoiantes não desistiam “ de se mostrarem cheios de esperança” de voltarem a Portugal “fixando épocas, umas depois das outras, na forma costumada”[30].
Se o tom desta notícia sobre os manejos de D. Miguel e dos seus partidários em Itália deixava trair o descrédito que começava a atingir os projectos miguelistas, não há dúvida que ela foi publicada num momento sensível dado que, a 23 de Junho, o Ministro dos Negócios Estrangeiros exprimira a sua inquietação junto do Ministro dos Negócios da Guerra por estarem a partir de Itália para Gibraltar, “com tensões de passarem depois para o Algarve, vários indivíduos Miguelistas (…) trazendo passaportes com nomes supostos”.
Pouco tempo depois, o Cônsul português em Génova informava o governo não só de estarem os miguelistas “ exultantes com os triunfos de D. Carlos” mas também do facto bem mais inquietante de lhes terem sido enviados de Livorno e de vários pontos da Sardenha navios com munições de guerra. Segundo o Cônsul, os Miguelistas continuavam a reunir-se no convento dos Jesuítas onde não se ouviria “ se não falar nas façanhas do Remexido”, ou seja, dos sucessos do líder de uma guerrilha antiliberal que se formara recentemente em Portugal na serra do Algarve. Recomendava-se por isso a máxima vigilância das embarcações que do porto de Gibraltar seguissem para aquela província meridional[31].
Temia-se mais uma vez uma expedição contra Portugal que se suspeitava agora pudesse desembarcar no Sul aproveitando os movimentos favoráveis a D. Miguel que ali se desenvolviam. Receava-se também, uma vez mais, o regresso do próprio D. Miguel mesmo na ausência de expedição. Esse receio era explicitamente expresso a 20 de Julho numa circular confidencial proveniente do Ministério da Guerra mandando que os governadores militares tomassem providências por constar, através de ofícios do Cônsul português em Tânger, que “ uma fragata napolitana tinha chegado aquele porto dizendo-se “que a bordo desta ía um individuo suspeito, cujos sinais físicos se assemelha(vam) aos do ex-infante D. Miguel”[32]. (…).
Nenhum ano foi, porém, mais fértil em alarmes do que o ano de 1838.
Para além das precauções mais ou menos permanentes tomadas em relação a qualquer deslocação de D. Miguel ou dos seus partidários em Itália, que redobrava caso houvesse qualquer indício de saída daquela Península, o governo começou a manifestar a sua preocupação, desde os primeiros dias de Março, com as notícias recebidas do embaixador de Espanha em Portugal relativas à saída do porto de Livorno com destino a Gibraltar do bergantim “Eduardo”, com bandeira Sarda, que conduzia a bordo 3500 espingardas que se afirmava destinaram-se à Península ibérica, 2000 à serra de Ronda em Espanha e 1500 ao Algarve. Foram de imediato pedidas medidas urgentes ao Ministério da Guerra no sentido de impedir o desembarque daquele armamento no reino[33].
A intensa actividade das guerrilhas no Algarve, que contavam com o apoio das populações rurais da serra, justificava, naturalmente, que esta tivesse passado a ser a província mais constantemente vigiada e onde parecia mais provável registar-se qualquer tipo de intervenção externa por parte dos miguelistas, quer se tratasse do desembarque de armas ou dinheiro para apoiar os rebeldes, quer se tratasse da temida expedição.
Esta última hipótese voltou a estar na ordem do dia a partir do mês de Abril de 1838 com contornos bastante alarmantes. Assim, do Ministério dos Negócios do Reino comunicava-se ao Ministro da Guerra a notícia, divulgada por autoridade galegas, de que “das portos do levante” se dirigia a Gibraltar para seguir para o Algarve “ uma expedição miguelista em que se trabalha(va) com muita actividade”. No mesmo ofício referia-se de novo o possível desembarque de armamento naquela região[34].
            Essa eventualidade tornou-se mais precisa nos dias seguintes pois continuavam a chegar ao ministério do reino “ repetidas notícias de que os sectários da Usurpação intenta(vam) verificar um desembarque de armamento para a serra do Algarve , ao Norte do Cabo de S. Vicente, ou nas praias da Baleeira , Pessegueiro e outras, mais próximas das matas do Campo de Ourique”, onde se “acoutava  uma guerrilha de miguelistas”. Evocava-se a necessidade de mandar postar forças militares em Vila Nova de Mil Fontes, praia do Pessegueiro, e na praça de Sines, para obstar ao desembarque ou apreender o armamento caso este se verificasse. Pedia-se igualmente que o Ministério da Guerra desse rápidas ordens neste sentido por se acreditar andar já cruzando os mares fronteiros à costa Sul de Portugal um brigue que se presumia ser aquele que trazia o referido armamento[35].
Poucos dias depois voltava a falar-se oficialmente de uma expedição miguelista “que se estaria activando” segundo notícias transmitidas pelo Capitán General da Estremadura espanhola. O local considerado mais provável para um desembarque continuava a ser o Algarve, mas mencionava-se agora também a hipótese de ele vir a ocorrer nas ilhas adjacentes. Estas informações, enviadas aos Administradores Gerais de todos os Distritos do reino, eram acompanhadas de ordens para que se empregasse a maior vigilância sobre todo o litoral, do Minho ao Algarve. Mandava-se ainda que fossem postas em alerta as guardas nacionais[36].
Ainda que se esperasse um acontecimento eminente, continuava a ser hipotética a forma de que ele poderia revestir. A incerteza quanto aos planos dos miguelistas em Itália manifestava-se em ofício enviado no dia 1 de Maio desse mesmo ano de 1838 ao Comandante da 4ª Divisão Militar, a Divisão da província do Minho, no sentido de que tomasse providências, em conjunto com as autoridades civis do distrito e com os comandantes das divisões militares mais próximas, para prevenir um possível “ projecto atrevido para perturbar a ordem estabelecida”.
O projecto, de acordo com novas informações havidas dos cônsules espanhóis em Baiona e Marselha, tinha a ver com a chegada a Livorno de uma corveta russa procedendo de Atenas com dinheiro, 150 homens e 18 peças, que se julgava destinada a proteger uma expedição que deveria sair de Génova para reunir-se às forças do ex-infante D. Carlos em Espanha. Acreditava-se também ter já saído dos portos do Levante uma “facção miguelista” que tentaria eventualmente desembarcar nas costas de Portugal, de preferência no Algarve, mas que também se julgava possível ir reunir-se às tropas Carlistas em Espanha “ com o fim de hostilizar o país pelo lado da fronteira”[37].
No mês de Julho o alerta prosseguia mas a incerteza perdurava. O comandante da Divisão Auxiliar Portuguesa que havia sido mobilizada para sustentar o combate dos liberais em Espanha, oficiava ao governador da 4ª divisão militar informando que acabava de receber notícias de D. Miguel segundo as quais o infante “ havendo recebido algumas somas e organizado os desgraçados que o seguiram se dispunha a deixar a Itália”. Julgava que a sua tentativa o encaminhasse para Portugal e alertava para o facto de ele procurar desembarcar no Minho para dali passar a Trás-os-Montes” dando as suas ordens para uma melhor defesa da fronteira[38].
           Entre Outubro e Novembro, o governo divulgava junto das autoridades locais mais notícias, extractadas de ofícios do encarregado de negócios de Portugal em Roma, que voltavam a abrir inquietantes perspectivas quanto a uma possível invasão de Portugal. Desta vez os planos atribuídos aos miguelistas eram no entanto bastante diferentes. Dizia-se que seria o Infante D. Sebastião o primeiro a franquear as fronteiras portuguesas, como lugar-tenente de D. Miguel, à testa de uma divisão que se estabeleceria num ponto indeterminado do país onde se reuniriam os seus partidários. Em Roma julgava-se que esses partidários se encontravam sobretudo nas províncias do Minho e Trás-os-Montes e parte da Beira [39] .
No mês de Dezembro a Secretaria de Estado dos Negócios do Reino voltava a apelar aos administradores gerais dos distritos para, em conjunto com as autoridade militares, empregarem todas as medidas “de vigor e energia” contra “os perturbadores do sossego público”, em consequência das notícias que continuavam a chegar de Itália. Essas notícias davam conta de que D. Miguel e os seus não “cessavam de conspirar” e de procurar “ alienar o espírito dos povos com doutrinas cismáticas, princípios exagerados de democracia e discussões entre os constitucionais”, prosseguindo também no intento de invadir Portugal.
Tratava-se ainda do projecto que se dizia vir a ser comandado pelo infante D. Sebastião que se supunha preparar-se para entrar no país por uma das províncias do Minho, Trás-os-Montes ou Beira, onde contava achar grande apoio dos miguelistas. Acrescentava-se ainda que o governo fora informado que da Holanda e da Inglaterra e outros portos estrangeiros tinham partido, com direcção a Portugal , “vários emissários com o fim de promoverem a sublevação e dar impulso aos seus planos sediciosos”. Para este fim contavam com dinheiro que lhes deveria ser remetido de Itália em moeda de ouro portuguesa e espanhola[40].
A invasão miguelista não se concretizou nem tendo à testa o príncipe proscrito nem sem ele, embora as ameaças de forças avançadas Carlistas, em certos casos contando com a participação de miguelistas, tenha sido particularmente intensa neste ano[41]. Mas foi neste contexto de expectativas e rumores que, em Maio de 1838, o príncipe proscrito voltou ao seu reino na convicção de alguns dos seus mais humildes súbditos. O regresso deu-se sob a forma do aparecimento de um falso D. Miguel, um impostor, que pressagiava um outro que a literatura iria tornar particularmente famoso: aquele que Camilo Castelo-Branco transformaria num dos protagonistas de um seu famoso romance intitulado A Brasileira de Prazins.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2. Os duplos de D. Miguel
 
 
O episódio ocorreu numa pequena localidade da Beira, Jarmelo, próxima da fronteira, um pouco ao norte da Guarda. Considerando os diversos planos existentes nas fileiras miguelistas, dentro e fora do país, relativos a acções a desenvolver na zona fronteiriça, em coordenação mais ou menos directa com as forças Carlistas que actuavam do lado espanhol, é bem possível que os acontecimentos de Jarmelo formassem parte de um plano mais amplo cujos contornos por hora nos escapam.
Os acontecimentos, que já tivemos ocasião de expor brevemente noutro lugar[42], foram comunicados em primeira-mão às autoridades por um regimento de Castelo Branco nos finais de Abril de 1838. Nessa participação referia-se o aparecimento, próximo da Guarda, de uma nova guerrilha, mais numerosa do que as que nesse mesmo ano e em anos anteriores tinham sido detectadas nas Beiras, e com características bastante diferentes dos outros movimentos que se tinham desencadeado naquela região.
A guerrilha era composta, segundo estas informações, por cerca de 150 homens e a sua principal característica era a de a maioria dos indivíduos que a compunham se apresentarem desarmados. O grupo apareceu nas imediações da cidade da Guarda e confrontou-se no dia 29 de Abril com um pequeno contingente de soldados de linha e vários corpos da Guarda Nacional. Para surpresa dos defensores da ordem os guerrilheiros conseguiram dispersar estas forças e pô-las em fuga, depois de terem ferido um dos comandantes do destacamento e de terem aprisionado alguns membros das Guardas Nacionais.
Poucos dias depois o Ministro da Guerra, Conde do Bonfim, recebia notícias do Quartel-general da Guarda anunciando que a guerrilha miguelista fora “ posta em completa dispersão” no dia 30. Informava-se ainda que os homens que a integravam pertenciam maioritariamente a povoações do concelho de Jarmelo e alguns aos de Belmonte. Mais inesperada era a referência a terem aqueles homens sido “seduzidos e engajados por um espanhol” que se julgava ser um ex-frade e tinha “feito acreditar aos povos” que era o ex-infante D. Miguel[43].
No Diário do Governo de 12 de Maio divulgava-se a notícia da formação e quase imediata dispersão da guerrilha voltando a referir-se que tinha por comandante um ex-frade espanhol e que os seus membros haviam sido seduzidos por ele e “por outros indivíduos de nenhuma consideração que procuravam fazer crer ser o dito ex-frade o Usurpador D. Miguel”. Acrescentava-se ainda a possibilidade de estar entre eles um antigo oficial do exército miguelista, o brigadeiro Rebocho[44]. No fim do mês o Periódico dos Pobres no Porto, nas “notícias do interior” dava como certo que o ex-frade espanhol que personificara o Infante era o célebre Alvito Buela conhecido como grande panfletário miguelista. Segundo a mesma fonte o falso D. Miguel já dera beija-mão e fizera alguns despachos[45]
Apesar de se afirmar que os mentores do movimento eram todos homens de “nenhuma consideração”, nas semanas seguintes foi demitido o Administrador do Concelho de Jarmelo e a sua Câmara Municipal dissolvida referindo-se expressamente que a medida tinha resultava do facto de não ter a Câmara impedido a reunião da guerrilha mas ainda de alguma forma ter auxiliado a sua formação”[46]. Quanto ao Administrador do Concelho, a sua demissão era justificada explicitamente por ter estado implicado na formação do movimento[47].
As repetidas notícias relativas ao rápido “aniquilamento da guerrilha” que circularam na imprensa a partir dessa data não eram inteiramente confirmadas pelos relatórios militares. Ainda no mês de Maio o governador da praça de Almeida, informando o Conde de Bonfim das operações levadas a cabo contra ela, referia que a força armada, que tinha sido enviada para a combater, conseguira matar alguns guerrilheiros “ prender outros e fazer dispersar o resto em grupos pequenos”[48]. Nos meses seguintes as autoridades viram-se de toda a evidência a braços com esses “pequenos grupos” e a região só voltou a ser dada como pacificada no início de Agosto[49].
Anos mais tarde, em 1844, quando se preparava uma nova e importante revolta miguelista, o episódio de Jarmelo foi evocado como exemplo a não seguir por um dos organizadores desse novo movimento, o Dr. Cândido de Figueiredo e Lima antigo professor da Universidade de Coimbra e membro de um dos últimos governos miguelistas. Em carta a António Ribeiro Saraiva, activo agente de D. Miguel em Londres, o Dr. Cândido, escrevia:
“É desnecessário lembrar a V. Ex.ª a importância do nosso movimento que se deve preparar com toda a segurança por não termos recurso algum dos que teve o Conde de Amarante e Marquês de Chaves de poder entrar na Galiza, em Espanha, em caso de algum mau sucesso, como aconteceu já em 1838 no concelho de Jarmelo onde, pela má direcção, tudo foi sacrificado com grande destruição e sangue dos inocentes povos”[50].
O caso não era inédito. Depois do primeiro exílio de D. Miguel em 1824, ocorrido na sequência da frustrada revolta ultra-realista da Abrilada, uma vaga de rumores relativos ao seu regresso tinha também servido de pano de fundo ao aparecimento, em Junho de 1825, de um falso D. Miguel, o primeiro de que há notícia, na Praça de Almeida, próximo da fronteira espanhola [51].
Mas será na época em que se preparou a última tentativa de insurreição armada miguelista em Portugal, a mesma insurreição que António Ribeiro Saraiva e o Dr. Cândido projectavam em 1844 e viria a ter lugar no quadro da Maria da Fonte e da Patuleia em 1846-47, que irá aparecer o mais célebre “falso D. Miguel” de que há conhecimento. Narrado por Camilo Castelo Branco este episódio tem lugar numa pequena paróquia da província do Minho, S. Gens de Calvos, no Carnaval de 1845.
O “falso D. Miguel ”, de Camilo, duplamente falso porque nascido da ficção, virá no entanto a tornar-se bem mais famoso do que qualquer um dos seus congéneres históricos. Para além disso, a memória destes últimos teria sido sem dúvida, bem mais difícil de desocultar sem a sua existência. Clara manifestação do axioma segundo o qual “o romance é a imaginação da história”[52].
Em todo o caso a história do falso D. Miguel da paróquia de Calvos criada por Camilo é apresentada como uma ficção mas não uma ficção qualquer. Segundo o autor, ela inspirar-se-ia num episódio real que lhe teria sido narrado por um indivíduo das suas relações, “um ilustrado cavalheiro da Póvoa do Lanhoso o Sr. Joaquim Ferreira de Melo e Andrade da casa nobilíssima das Argas, falecido com mais de oitenta anos de idade em 1881”.
 Camilo faz ainda questão de esclarecer que, nos seus traços básicos, a história lhe fora confirmada pelo famoso Padre Casimiro José Vieira, um eclesiástico que muito se distinguira na sua juventude pela sua participação na revolta do Minho de 1846, a revolta da Maria da Fonte, durante a qual tinha comandado uma parte das hostes populares. Apesar de todos estes “certificados de veracidade”, não deixa de acrescentar que a imprensa contemporânea não tinha nunca, que ele soubesse, referido este pseudo D. Miguel, rematando com uma profissão de fé nas “revelações do ancião de Lanhoso”[53].
O D. Miguel de Camilo assemelha-se muito ao de Jarmelo na sua atitude e nos seus gestos sem que exista nenhuma evidência de que o romancista tenha tido conhecimento do que se passara naquele concelho da Beira em 1838.
Tal como o D. Miguel da Beira também o do Minho dá beija-mão e assina despachos na residência paroquial de São Gens de Calvos onde se instala depois de se ter feito “reconhecer”pelo ingénuo abade da paróquia durante a representação, pelo Entrudo, de um entremez numa eira. Desta feita, porém, não se trata de uma parte de um plano gizado por partidários do rei exilado que quisessem, eventualmente, experimentar as potencialidades mobilizadoras da figura real, mas sim da montagem de um golpe que põe em cena interesses privados do seu principal agente, um soldado desmobilizado do exército de D. Miguel, sem modo de vida regular, que acompanhara depois, no Algarve, a guerrilha do Remexido.
O impostor que se acolhe à freguesia de Calvos e transforma em improvisada Corte a pobre residência do seu pároco distribui as mais diversas mercês entre os seus modestos cortesãos: faz Capelão-mor e Dom Prior de Guimarães o seu hospedeiro, Visconde o seu cúmplice, General e Conde o tenente-coronel Cerveira Lobo, morgado de Quadros e Sargento-mor um pedreiro, Zeferino das Lamelas, filho de um antigo voluntário realista que ficara “tolhido das pernas” ao lançar-se ao rio Tâmega no Inverno depois de ter protagonizado, em 1838, um pequeno motim em favor de D. Miguel. Em troca come os melhores petiscos que saem das mãos da cozinheira do Abade, bebe os melhores e mais antigos vinhos da sua garrafeira e prepara-se para fazer um pé-de-meia com os generosos donativos dos realistas da região desejosos de ver triunfar um movimento que voltasse a pôr D. Miguel no trono.
             Apesar dos detalhes que Camilo fornece na Brasileira de Prazins a propósito do seu falso D. Miguel do concelho da Póvoa do Lanhoso, os aspectos mais marcantes da sua presença ali não divergem muito dos que são atribuídos ao D. Miguel da Beira. Independentemente dos contextos, os dois fazem despachos e admitem ao beija-mão os que deles mais se aproximam, ou seja, adoptam dois traços distintivos da autoridade régia tal como ela podia ser concebida pelos mais simples dos seus súbditos. No livro de Camilo, o processo de identificação da condição régia do impostor é exposto exactamente nesses termos por Cristóvão Bezerra, um dos miguelistas que nele reconhecem o seu rei. Apenas o facto de coxear, particularidade distintiva do príncipe proscrito desde que tivera em Lisboa, em 1828, o célebre acidente ocorrido quando conduzia um carro puxado a mulas, se acrescenta àquelas características:
“ O primo Cristóvão redarguiu, magoado na sua esperteza, que era tão certo estar el-rei em Calvos como era certo ter-lhe beijado a régia mão em casa do abade na noite sempre memorável de 16 de Abril de 1845. Que só o tinha visto de relance em Braga em 32, mas que o conhecera pelo retrato; que até manquejava um pouco, tal e qual como se sabe, depois que Sua Majestade quebrou a perna em 28. Que el-rei nomeara o abade de Calvos seu capelão-mor, que dera a mitra de Coimbra ao abade de Priscos e fizera chantre o Padre Manuel das Agras, e que a ele lhe fizera a mercê de duas Comendas e o título de barão do Bouro, afora graças a diversos clérigos e leigos”[54]
Em Roma, o encarregado de negócios de Portugal verberava o príncipe proscrito por razões muito semelhantes junto do Cardeal Secretário de Estado por este, logo em 1835, ter atribuído títulos e recompensas a alguns dos seus partidários. Em ofício de Maio de 1835 dizia Miguéis de Carvalho para Lisboa:
               “ Falei ao Cardeal no mau efeito que produziram em Portugal os actos que D. Miguel estava praticando aqui, como dar condecorações, postos a Militares (…) e pedi-lhe que ponderasse a Sua Santidade que estas loucuras não podiam ter outro resultado, que o de indispor o seu Governo com o nosso, e prejudicar ao arranjo dos negócios. O Cardeal disse-me que já havia falado ao Santo Padre nas condecorações, porque lhe havia constado que D. Miguel tinha conferido da Ordem de Cristo a um Pintor que está em Casa da Princesa de Dinamarca e que por ordem de S. Santidade tinha estranhado aos agentes de D. Miguel aquele procedimento. Quanto aos outros actos de que o Cardeal se riu, prometeu que também falaria ao Santo Padre”[55].
               Guedes Quinhones, o miguelista renegado cujas Memórias foram publicadas por Maria Teresa Mónica, não deixa de fustigar as prebendas com que o príncipe exilado contemplava em Roma alguns dos seus partidários escrevendo, em particular, contra as comendas com que agraciou os três irmãos Mencacci, seus íntimos amigos e cujo pai, um romano rico, lhe concedeu vários empréstimos pondo também à sua disposição algumas das residências em que morou.
               Referindo-se a essas e a outras benesses distribuídas por portugueses residentes quer em Roma quer em Portugal – do Marquês do Lavradio a quem fez Camarista e deu a grã-cruz da Conceição ao Remexido a quem fez brigadeiro – Quinhones comparou a condição de D. Miguel em Roma à de Sancho Pança no seu reinado na ilha dos lagartos[56]. Uma comparação literária que pretendia acentuar o quanto o poder de D. Miguel, rei exilado, era um poder fictício. Não era bem essa, porém, a posição do encarregado de negócios português a quem o comportamento do príncipe a este respeito continuava a inquietar.
               Em Julho de 1836 Migueis de Carvalho voltava a referir a atribuição de distinções várias a portugueses e estrangeiros:
“D. Miguel deixou Porto D’Anzio, e dentro de poucos dias irá ocupar o Palácio comprado ultimamente pelo seu Camarista, e amigo Mencacci. Continua a distribuir profusamente condecorações a nacionais e estrangeiros. Há pouco nomeou Cavaleiro da Ordem da Conceição Gaetano Muroni, vulgo Gaetanino, Borleiro do Papa e muito valido, o qual por ordem de S. Santidade recusou a condecoração”[57].
No ambiente do exílio as distinções de D. Miguel podiam ter tanto de incómodas como de estratégicas em particular quando visavam estrangeiros. Se as que foram atribuídas aos Mencacci tinham uma retribuição material mais ou menos imediata, dadas as dificuldades financeiras com que D. Miguel e os exilados lutavam em Roma, outras, como a que Gaetano Muroni terá recusado, teriam o interesse político de, caso fossem aceites, implicarem a também a aceitação do estatuto de quem as atribuía. No contexto do acomodamento em curso desde 1835-1836 entre o governo português e a Santa Sé, era importante para a causa miguelista não apenas não perder posições já adquiridas relativamente à condição real de D. Miguel mas marcar mais algumas que impedissem futuros recuos.
As mercês de D. Miguel no exílio nada tinham de facto de arbitrário, embora só pudessem ser concretizáveis num futuro incerto, quando a sua causa triunfasse e ele voltasse ao seu reino: a sua distribuição correspondia a uma contínua reafirmação da sua condição real e interromper o processo que significava a possibilidade de conceder graças correspondia, de certo modo, a renunciar a essa condição.
É possível pensar que os sucessivos e frustrados planos dos miguelistas exilados de regresso a Portugal e de restauração não decorressem apenas da má gestão dos poucos meios de que dispunham, mas que correspondessem, também, pelo menos nalguns casos, à necessidade de emitir sinais que mantivessem viva a esperança entre os seus partidários que permaneciam em Portugal numa efectiva restauração do regime miguelista e num efectivo regresso de D. Miguel. Era importante pelo menos difundir a mensagem de que os exilados não tinham baixado os braços e continuavam a trabalhar em favor da causa.
As notícias que eram divulgadas em Portugal sobre a organização de expedições em Roma e o regresso de D. Miguel à Península, quer a Espanha para combater ao lado de D. Carlos quer a Portugal para se colocar à testa dos seus adeptos, difundidas oficialmente a partir da legação de Portugal em Roma ou tomando a forma de rumores, podem ser eventualmente melhor entendidas nesta perspectiva.
Mesmo o circunspecto Miguéis de Carvalho, que seguia com o maior cuidado todos os sinais que pudessem significar projectos miguelistas que pusessem em causa a estabilidade do governo em Portugal, percebeu desde cedo que os emigrados usavam muitas vezes o rumor como arma política. A propósito das notícias que circulavam em Roma sobre projectos miguelistas escrevia em Maio de 1835:
“Quanto a alistamentos, não existem por agora neste Estado e, pelo contrário, alguns dos Portugueses aqui refugiados têm entrado no Serviço do Papa alistando-se nos Regimentos Suíços que se acham em Bolonha e suas imediações. É verdade que os sequazes de D. Miguel têm falado a algumas pessoas para os acompanharem para Portugal; mas isto por mera impostura, para se darem alguma importância, sendo certo que actualmente todas as esperanças desta gente estão nas vitórias de D. Carlos, e nos esforços que farão em favor deste os Absolutistas da Europa”[58].
Em Julho desse mesmo ano o encarregado de negócios em Roma atribuía ao próprio D. Miguel a origem dos boatos postos a circular sobre o futuro da causa de D. Carlos depois da morte do general carlista Zumalacarregui que tinha lançado a consternação entre os seus partidários nos Estados Pontifícios:
(…) “tais esperanças (…) de voltar a Portugal, acham-se hoje em grande decadência pela morte (…) de Zumalacarregui, e pelas notícias do calor com que a Inglaterra e a França se aplicam a socorrer a Rainha de Espanha. Sei com toda a certeza que, para dar alento ao descorçoado Mencacci e outros que tais, que estavam aflitíssimos com a suposição de que a Causa dos Pretendentes morria com Zumalacarregui, (D. Miguel) encarregou uma pessoa do seu séquito de espalhar que o General Valdez havia desertado para D. Carlos com uma grande parte do exército da Rainha”[59].
 
 
 
 
 
3. A “roda-viva”
 
 
É possível que a enorme mobilidade que caracterizou a estadia de D. Miguel nos estados pontifícios possa entender-se melhor dentro destas coordenadas.
Na verdade, para além das viagens a Génova e a Pádua que realizou inesperadamente nos seus primeiros tempos em Roma, o príncipe proscrito pautou a sua actividade ao longo do período em que ali residiu por um evoluir constante e quase febril entre as suas três casas: o palácio que habitava na própria cidade, a residência de Albano e a residência de Porto d’Anzio, a 28 milhas da cidade, para onde se retirava frequentemente e onde passava largas temporadas.
A “inacção” que, segundo Miguéis de Carvalho, os partidários de D. Miguel lhe atribuíam em consequência, provavelmente, da hesitação que demonstrava face aos vários e desencontrados planos que os seus partidários lhe apresentavam, não era incompatível com esta outra faceta que os poucos autores que se debruçaram sobre a estadia romana do Infante qualificaram de “irrequieta”[60].
D. Miguel parecia tomado de uma necessidade quase constante de movimento, aparecia onde menos se esperava e era também frequente não aparecer quando e onde era esperado, como ocorreu aquando do encontro que fora combinado com António José Guião e o Marquês do Lavradio, respectivamente seus antigos ministro e embaixador, às portas de Roma.
Essas frequentes deslocações representavam um verdadeiro quebra-cabeças para o encarregado de negócios Miguéis de Carvalho que pretendia descortinar nelas uma lógica política que nem sempre teriam. É o que parece ter ocorrido no início de Agosto quando D. Miguel veio inesperadamente a Roma, onde apenas se terá demorado quatro horas, para se avistar com o seu “estado-maior” a quem tinha marcado um encontro no caminho:
          “ Na segunda página do meu precedente ofício informei a V. Ex.ª da volta de D.Miguel a Roma ontem pelas 7 horas da manhã. Ele demorou-se aqui apenas 4 horas para conferenciar com Lavradio, Guião, e Frei Fortunato, e tornou a voltar para Tivoli. Parece que D. Miguel havia determinado aos dois primeiros indivíduos que viessem ao seu encontro na estrada de Tivoli, e que não se achando eles no lugar indicado e à hora prescrita D. Miguel enfastiado de esperá-los ali, veio a Roma. O objecto da vinda ainda não pude penetrar” [61].
Não ser encontrado onde se esperava e proceder a múltiplas deslocações sem objectivo aparente tinha, como contrapartida, o chegar sem se fazer anunciar e, por vezes, sem ser conhecido e sem se dar a conhecer.
Uma das mais completas ilustrações desta forma de agir acha-se logo no início da sua estadia em Roma no modo como se apresentou no Convento romano dos Capuchinhos onde estavam alguns frades chegados de Portugal:
“No dia 1º de Outubro saiu Sua Alteza a visitar diversas igrejas das mais notáveis e foi também a S. Paolo. Junto das Ave-Marias foi ao Convento dos Capuchinhos e procurando o Guardião lhe disse que desejava falar aos Religiosos ultimamente chegados de Lisboa. Não se dando porém o Sr. D. Miguel a conhecer não compareceram aqueles Religiosos por se acharem no refeitório. Saindo do convento Sua Alteza disse ao porteiro que dissesse aos sobreditos Religiosos que D. Miguel os tinha vindo visitar”[62].
Uns dias depois os religiosos a quem era destinada a inesperada visita dirigiram-se-lhe quando ele saía da igreja dos jesuítas onde tinha assistido à consagração do novo bispo de Riete, e procuraram esclarecer o mistério da sua ida ao convento perguntando ao príncipe se este os conhecia. Este retorquiu-lhes que sim e, continuando a andar, pediu-lhe que “ rogassem a Deus que fizesse alguma coisa”[63] .
A surpresa dos religiosos capuchinhos pode pôr-se em paralelo com a do avô miguelista de Jacinto do romance A Cidade e as Serras de Eça de Queirós quando, também, ele se deparou inesperadamente com o infante em Lisboa e foi por ele conhecido:
“ O meu amigo Jacinto nasceu num palácio com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival. (…) Seu avô, aquele gordíssimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa “o D. Galeão” descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta, rente ao muro de um quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas de picador, que galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto – até lhe apanhou bengala de castão de ouro que rolava pelo lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos:
- Oh Jacinto “ Galeão”, que andas tu aqui, a estas horas a rebolar pelas pedras?
E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o senhor infante D. Miguel!”[64]
Embora desde o início da sua estadia em Roma D. Miguel circulasse frequentemente entre as várias residências que mantinha, estas características parecem ter-se acentuado em meados do ano de 1836 período em que a actividade política dos miguelistas em Roma se terá acentuado também assim como os seus planos de restauração.
Nessa época, em que o encarregado de negócios acreditava existirem efectivos sinais de uma retirada de D. Miguel de Roma, a sua mobilidade foi sublinhada nos seguintes termos:
“Passando ao que nos pode interessar por estas partes, começarei por informar a V. Ex.ª que se observa que D. Miguel, o qual antecedentemente vinha de Porto D’Anzio a Roma, e voltava para ali com tal ou qual regularidade, depois de algum tempo não faz outra vida, que andar de um lugar para o outro, ocultando sempre os seus movimentos.»
A seguir Miguéis de Carvalho encarava várias hipóteses que pudessem servir de explicação àquilo que designava por “moto próprio de D. Miguel” atribuindo-o mesmo à necessidade de evitar tanto os credores como os portugueses que lhe pediam dinheiro. Uma outra hipótese que sugere como possível explicação “ da roda-viva” em que, segundo as suas palavras, D. Miguel andava tinha a ver com os preparativos ocultos de uma fuga para a Galiza a que os seus amigos o instigavam[65].
Apesar de, nesse ano de 1836, os planos miguelistas se sucederem, o infante continuou sempre em Roma mesmo se muitas notícias davam como segura a sua intenção de partir para a Península Ibérica; a “roda-viva”, porém, continuava. No fim do ano, Migueis de Carvalho descrevia assim o modo como circulava entre as suas três residências de Roma, Albano e Porto d’Anzio:
“ (…) ele (D. Miguel) anda quase sempre girando de um para outro sítio e quando falta neste é suposto achar-se naquele. Esta táctica é bem provável que seja pensada e dirigida para ocultar a sua futura evasão principalmente em Roma, onde mais lhe interessa que ela se ignore, ao menos por algum tempo”[66].
Mas não foi apenas nesta conjuntura que as múltiplas idas e vindas de D. Miguel mereceram um particular interesse a Miguéis de Carvalho.
As frequentes deslocações do infante entre as suas várias residências nos Estados Pontifícios mereciam-lhe no início de 1839 as seguintes reflexões:
“ D. Miguel há tempo a esta parte vive numa inquietação extraordinária. Não se fixa por mais de um até dois dias nos sítios que hoje frequenta que são Roma, Albano e Porto d’Anzio. Esta inquietação data do momento em que lhe foi conhecido o discurso do Trono que produziu aqui, tanto entre os miguelistas portugueses como entre os seus partidistas, efeitos de que já informei V.E.ª nos meus precedentes ofícios”[67].
De facto, as negociações com a Santa Sé já tinham progredido o suficiente em 1838 para permitir à rainha, no Discurso do Trono de 1839, anunciar como próximo o restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois estados, notícia que terá espalhado a inquietação entre os partidários de D. Miguel em Roma a começar, segundo Miguéis de Carvalho, pelo próprio infante. É duvidoso, no entanto, que as explicações políticas que o encarregado de negócios encontrava sucessivamente para justificar a “inquietação” do infante tivessem fundamento; se tivermos em conta as descrições constantes da correspondência de Miguéis de Carvalho no seu conjunto, há que admitir que a referida “inquietação” se parece muito mais com um traço distintivo de uma forma mais ou menos permanente de estar e de agir de que encontramos também traços noutros tempos e lugares da sua vida.
As surpresas e situações inesperadas que resultavam desse modo de estar e viver em “roda-viva” tornavam porventura mais verosímeis, para muitos dos partidários da causa miguelista no interior do reino, as notícias de um imprevisto e inesperado regresso de D. Miguel a Portugal.
As características acima enunciadas remetem-nos mais uma vez para a ficção. A observação feita por Guedes de Quinhones sobre as semelhanças entre D. Miguel em Roma e Sancho Pança na sua ilha, sugere, a partir da obra recente de Juan José Saer, Lignes du Quichotte, uma outra comparação. Depois de defender a tese de que a intensa mobilidade de D. Quixote esconde a sua impossibilidade de empreender qualquer verdadeiro movimento, Saer afirma a radical negação da epopeia que o romance de Cervantes constitui e sublinha, deste modo, a forma como a ilusão do movimento em D. Quixote oculta uma completa imobilidade:
“ L’illusion du déplacement occulte le fait essentiel de l’histoire, à savoir que sur le plan de son évolution intellectuelle et morale, et au regard de sa capacité de modifier la réalité – c’est ce qui l’a poussé à se mettre en route – Don Quichotte en est toujours au même point »[68].
A aproximação a esta visão de D. Quixote é sem dúvida tentadora, tendo em conta a constante mobilidade física de D. Miguel e a mobilidade política dos seus partidários em Itália na sucessiva preparação de intervenções em Portugal, visando a restauração, nunca concretizadas ou votadas a um permanente fracasso que lhes confere um indiscutível pendor anti-épico.
A incapacidade de modificar a realidade tem sido precisamente considerada uma das características da cultura política portuguesa que se relacionaria com a recorrência, desde os séculos XVI e XVII, do mito sebástico, a crença no regresso de D. Sebastião, o rei desaparecido no norte de África na sequência da batalha de Ksar-el-Kébir (Alcácer-Quibir), e de que houve também várias personificações históricas. O sebastianismo seria um traço identitário dos portugueses que se traduziria, em momentos de crise, na expectativa de um Salvador secular. A figura de D. Miguel não escapou a essa assimilação.
Veiga Torres, um autor que se interessou pela permanência na sociedade portuguesa do mito do regresso de D. Sebastião, considerou, por exemplo, que o sebastianismo tinha inspirado “ os bandos tradicionalistas do velho Portugal” e que, ainda em 1846, na revolta camponesa da Maria da Fonte dele se “ encontra(vam) ecos nas guerrilhas do Alto-Minho comandadas pelo Padre Casimiro”[69].
No entanto, embora o paralelismo entre o mito de D. Miguel e o D. Sebastião tenha sido já várias vezes evocado, não parece que esta comparação possa ser transposta para o horizonte de experiência dos partidários do infante que protagonizaram os episódios relativos aos falsos D. Miguel ou que viveram sucessivamente a expectativa do seu regresso, mesmo quando em textos provenientes de letrados encontramos o epíteto de “Desejado”, termo que designava habitualmente D. Sebastião, aplicado a D. Miguel.
Na verdade, como já tivemos ocasião de escrever[70], embora o miguelismo tenha acolhido muitos traços proféticos e integrado uma espécie de “messianismo difuso”, para citar a feliz expressão utilizada por Armando Malheiro da Silva na sua obra, Miguelismo. Ideologia e Mito[71], isso não significa que represente uma actualização do sebastianismo, mesmo se traços morfológicos como a crença no regresso do rei e os falsos D. Miguel parecem forçar a analogia.
Tanto quanto hoje se sabe, nos anos 20 e 30 do século XIX, o sebastianismo, enquanto referência a que se encontrava ligada uma literatura profética precisa, parecia estar em vias de desaparecimento. É certo que a revivescência da crença sebástica durante as invasões francesas é um facto atestado, embora haja um importante trabalho crítico a empreender sobre as suas manifestações. Mas quando procuramos orientar-nos no universo das produções literárias associadas ao mito sebástico, em particular as chamadas trovas de Bandarra, um corpus literário nascido no século XVI e sucessivamente reeditado nos séculos seguintes, embora com muitas variações, não encontramos muitas bases para sustentar a comparação.
José von den Basselaar, em estudo recente, não conseguiu de facto identificar nesse período mais de três edições das trovas contendo reactualizações das velhas profecias. Na primeira, publicada em 1822, identificava-se o Imperador, cujo regresso era anunciado, com D. Pedro e a ilha escondida, de onde regressaria, com o Brasil; na segunda, publicada no ano seguinte, o rei “Desejado” era D. João VI cujo regresso do Brasil fora de facto longamente esperado no reino entre 1807 e 1821 e, na última, publicada em 1833, em plena guerra civil entre liberais e absolutistas, os poemas de Bandarra eram interpretados como prenúncio de vitória liberal e, mais uma vez, era D. Pedro que era identificado como o “Desejado”[72].
No entanto, mesmo que não seja particularmente útil insistir na analogia entre as expectativas criadas em torno de um possível regresso de D. Miguel ao reino e o sebastianismo, essas expectativas, tais como as que se produziram em relação a D. Sebastião, participam de um fundo cultural comum presente em vários contextos históricos e geográficos da Europa moderna, adentrando-se pelo século XIX, como fica suficientemente ilustrado na obra já citada de Yves-Marie Bercé sobre o mito do rei “escondido”. A ligação do tema do rei escondido com várias configurações míticas da monarquia no período moderno, em particular as que se prendem com o imaginário do rei como dispensador último de justiça, deve ser particularmente realçada.
O paralelo ganha assim um novo sentido e as expectativas sobre o regresso de D. Miguel têm certamente vantagem em ser aproximadas de outras manifestações de esperança colectiva no regresso de reis ausentes ou desaparecidos, nomeadamente as que ocorreram em períodos cronologicamente mais próximos. É o caso das que levaram ao reconhecimento de Fernando IV das Duas Sicílias num jovem Corso que, com outros companheiros, ia juntar-se ao exército de Condé para combater a república napolitana e as tropas francesas, ou das esperanças dos realistas franceses em relação a Luís XVII assim como algumas das personificações que as acompanharam.
Em Portugal foi sem dúvida o promissor destino literário que o grande romancista Camilo Castelo Branco assegurou à figura do “falso D. Miguel” que se constituiu como o melhor veículo para deslocar para o terreno da história esta faceta do miguelismo.
Não espanta, nessa medida, que D. Miguel e os seus duplos, históricos e literários, apareçam como um campo de prospecção bastante prometedor para a exploração dessa grande jazida que representam as relações entre literatura e história.
Constituem, sem dúvida, também um muito conveniente ponto de observação sobre a constituição do miguelismo como mito político[73] e sobre a construção histórica da personagem de D. Miguel.
 
 
 
 

** Este artigo resulta da reelaboração de um capítulo da obra D. Miguel I, Lisboa, Círculo de Leitores (no prelo)
[1]Arquivo Histórico – Diplomático, Legação de Portugal em Roma, Cxª 244 Oficio nº 52 de 24 de Outubo de 1834
 
 
      
 
[2] Arquivo Histórico-Mililitar, 1ª Div., 22ª Sec. Cxª. 35, Mç 8, Vários ofícios do Ministério da Guerra.
 
 
[3] Arquivo H-Diplomático, Legação de Portugal em Roma, oficio 22 de5 de Junho 1835
 
 
[4] Arquivo Histórico-Diplomático,Cxª 244, Legação de Portugal em Roma, Oficio 22, de 5 de Junho 1835
[5] AHM, 1ª Div, 21ª Sec.,Cxª 2, mç 4
[6] Arquivo H-Diplomático, Cxª 244, Oficio 46 de 24 de Novembro de 1835
 
 
[7] AHM, 1ª Div, 22ª Sec,Cx.ª 29, mç. 3
[8] AHM, 1ª Divisão, 22ª Secção, Cxª. Nº 32, mç. 26
[9] AHM, Idem.
[10] AHM, Idem.
[11] AHM, 1ª Div, 22ª Sec., Cx.ª nº 30, mç., 2
[12] AHM, 1ª Div., 22ª Sec., Cx.ª nº 32, mç., 26
[13] Periódico dos Pobres no Porto, nº 31 de 5 de Fevereiro de 1835 (notícias do interior).
[14] AHM, 1ª Div., 22ª Sec., Cx.ª 9
[15] AHM, 1ª Div., 22ª Sec., mç 22, doc. 669
[16] O Eco, nº 61 de 29 de Fevereiro de 1836
[17] AHM, 1ª Div., 22ª Sec., Cx.ª nº 26, mç. nº 2
[18] AHM, 1ª Div., 22ª Sec., Cx.ª 8, mç. 6
[19] AHM, 1ª Div., 25ª Sec., Cx.ª 52, mç. 2
[20] AHM, 1ª Div., 22ª Sec., Cxª. nº 36, mç., 9
[21] AHM., 1ª Div., 25ª Sec., Cxª. 53, mç. 2
[22] AHM., Idem.
[23] AHM., 1ª Div., 22ª Sec., Cxª 16 , mç 2
[24] AHM, 1ª Div., 22ª sec., cx.ª nº 36, mç. 9
[25] AHM., 1ª Div., 22ª sec., cxª 22, mç. 78
[26] AHM., 1ª Div., 25ª sec., cxª 53, mç 4
[27] AHM, Idem.
[28] AHM., 1ª Div., 22ª sec., cxª 4, mç. 1
[29] AHM., 1ª Div., 25ª sec., cxª. 53, mç. 4
[30] Diário do Governo, nº 156 de 5 de Julho de 1837
[31] AHM., 1ª Div., 25ª sec., cxª 53, mç. 4
[32] AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 51, mç. 1
[33] AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 53, mç. 3
[34] AHM., 1ª Div., 25ª Sec.,, cxª 53, mç. 4
[35] AHM., Idem.
[36] AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 52, mç. 2 e cxª 56, mç 5
[37] AHM., 1ª Div., 22ª Sec., cxª 53, mç. 24
[38] AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 57, mç.4
[39] AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 53, mç.3
[40] AHM., 1ª Div., 25ª Sec. Cxª 53, mç. 4
[41] Para as ameaças “carlo-miguelistas” na fronteira portuguesa ver a nossa tese de doutoramento publicada sob o título: Rebeldes e Insubmissos. Resistências populares ao liberalismo, 1834-1844, Porto, Afrontamento, 2002
[42] Op. cit., pp. 228-234
[43] AHM., 1ª Div., 25ª Sec., Cxª 41, mç., 8
[44] Diário do Governo nº 112 de 12 de Maio de 1838
[45] Periódico dos Pobres no Porto nº 125 de 29 de Maio de 1838
[46] Idem, nº 114 de 15 de Maio de 1838
[47] Idem.
[48] AHM., 1ª Div., 24ª Sec., Cxª. 3, mç. 11
[49] Diário do Governo nº 181 de 2 de Agosto de 1838
[50] Carta de Cândido Figueiredo e Lima a António Ribeiro Saraiva de 28 de Setembro de 1844 in A revolta miguelista contra o Cabralismo, p. 64.
[51] Sobre este episódio ver: António Monteiro Cardoso, “ Notícias aterradoras e pasquins incendiários. A circulação de rumores em Trás-os-Montes no tempo das lutas liberais”, Actas do Colóquio Contra-revolução, Espírito público e Opinião (secs. XVIII e XIX), CEHCP, Lisboa (no prelo)
[52] A frase, com sabor a axioma, consta de uma entrevista dada ao jornal “Le Monde”de 12 de Maio de 2006 pela romancista francesa Anne-Marie Garat a propósito da publicação do seu último romance, Dans la main du diable.
[53] Camilo Castelo Branco, A Brasileira de Prazins, Lello e Irmão Editores, Porto s/d, p. 45 (1ª Ed. 1882)
[54] Idem, p.47
[55] Arquivo Histórico-Diplomático, Cxª 244, Oficio nº 17 de…de Maio de 1835
[56] Memórias de um Miguelista Renegado – António Guedes de Quinhones, Prefácio, leitura e notas de Maria Teresa Mónica, Publicações Alfa, Lisboa, 1990, pp. 29-32
[57] Arquivo Histórico-Diplomático, Cxª 244, mç. Ofício nº … de 9 de Julho de 1836
[58] Arquivo Histórico-Diplmático, Cxª. 244, ofício nº 18 de 20 de Maio de 1835
[59] Idem, ofício nº 31 de 7 de Julho de 1835
[60] Padre José de Castro, Portugal em Roma, União Gráfica SARL, Lisboa, 1939, 2º vol., p. 241-288
[61] Arquivo Histórico-Diplomático, Cxª. 244, oficio nº 34 de 12 de Agosto de 1835
[62] Idem, ofício nº 45 de 10 de Outubro de 1834
[63] Idem.
[64] Eça de Queirós, A Cidade e as Serras, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, Fixação do texto e notas de Helena Cidade Moura. (1ª Ed. …)
[65] Idem, ofício nº 16 de 10 de Junho de 1836
[66] Arquivo Histórico-Diplomático, Cx.ª244, ofício nº 34 de 6 de Dezembro de 1836
[67] Arquivo Histórico-Diplomático, Cx.ª 244, ofício nº 4 de 29 de Janeiro de 1839
[68] Juan José Saer , Lignes du Quichotte, , Paris , Ed. Verdier, 2003
[69] José Veiga Torres, “ Um exemplo de resistência popular – o sebastianismo”, Revista Critica de Ciências Sociais, nº 2, Set-Dez. de 1978, p. 31
[70] Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, Rebeldes e Insubmissos. Resistências Populares ao Liberalismo (1834-1844), Porto, Afrontamento, 2002
[71] Armando Malheiro da Silva, Miguelismo. Ideologia e Mito, Livraria Minerva, Coimbra, 1993
 
[72] José van den Basselaar, O Sebastianismo – História sumária, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987
[73] Sobre a mitologia política do miguelismo ver o já citado trabalho de Armando Malheiro da Silva, Miguelismo. Ideologia e Mito, Livraria Minerva, Coimbra, 1993